O revés do iluminismo digital
No artigo, o jornalista e mestre em História Social Zeca Peixoto analisa o revés do iluminismo digital.
Poderia ser mais uma postagem sem engajamento numa rede qualquer. E também não faria dessa situação um muro de lamentações à busca de likes. Como espécie de Brancaleone, prossigo teimosamente. E nessa marcha inglória, reiteradas vezes tenho chamado atenção do drástico recuo da cognição coletiva em decorrência das redes sociais.
Cravo: a meta da Meta (assim como a do Google e outros atores hegemônicos do ecossistema digital) é reduzir a busca do conhecimento à experiência rasa da publicação imagética (fotos e vídeos). Ato contínuo do esvaziamento conteudístico da Internet, que nos anos 90 se apresentou como a grande possibilidade de “revolução” midiática com viés libertário.
A revolução seria digital? Os primeiros ensaios de mobilização coletiva via net chegaram a apontar possível início à concretização da utopia digital mediante ações nas redes. Loas à memória da “Batalha de Seattle”, ocorrida em novembro de 1999 no Estado de Washington (EUA). Milhares de pessoas convocadas por intermédio da nova mídia, a Internet, se reuniram para protestar contra a Terceira Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC). Sob intensos embates nas ruas contra forças policiais, reivindicavam o “comércio seguro”. Naquele momento, alertas já eram dados acerca do desequilíbrio climático e as gritantes desigualdades sociais do planeta. Posteriormente, em 2014, a experiência do Podemos na Espanha, partido político à esquerda do espectro que se organizou economicamente por crowdfunding e politicamente inaugurou as grandes assembleias digitais.
Reflexos de um novo momento? Nascida sob a práxis da serendipidade, anglicanismo que tem origem na palavra serendipity, ou seja, achar o que não está à busca, a Internet acenava como frutífera selva em continente desconhecido onde todos peregrinavam na expectativa de serem surpreendidos por algo novo. Fosse um site, blog etc. O YouTube, que ainda não pertencia ao Google, funcionava como escoadouro de conteúdos sem os ditames do algoritmo. Usuários não eram impulsionados e direcionados. Alguns apostavam que chegara a era dos consumidores-produtores.
Ledo engano. Tomando emprestado ao velho Karl, tudo que é sólido desmancha no ar. E a aposta na Internet como espaço de liberdade de criação e prateleira diversa à exposição plural se transformou em oligopólios de marketplaces. Usuários foram conduzidos à categoria de mercadorias para trabalhar de graça e alimentar os sedentos algoritmos de Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin (donos do Google), e Elon Musk, entre outros trilionários. O mundo se transmutou num grande quintal digital. E com consequências deletérias à capacidade de absorção do conhecimento à maioria esmagadora da população do planeta.
A economia da atenção foi triturada. E no atual estágio a situação ganha contornos macabros. Sequer precisa pensar. A inteligência artificial trabalha para o usuário. Seja escrevendo um texto, compondo uma música, pintando um quadro, elaborando um projeto e, arrisco dizer, até apurando um fato em flagrante deontologicídio jornalístico.
A conta chegou. Dos anos 90 do século passado até o momento o saldo é assustador. Comportamentos políticos e culturais registraram crescimento exponencial do conservadorismo, do fundamentalismo religioso e, em resumo, da extrema-direita. Novas profissões vieram à baila: os patéticos “influencers” e uma leva de “sabidos” peritos em soft extorsão que se assumem como coachs, mix de psicólogo charlatão, comunicador, embromador, curandeiro e construtor de consensos à base de platitudes de autoajuda.
Nos anos 20 do século XX Adolf Hitler se utilizou do rádio; nos anos 20 do século XXI o neofascismo se utiliza da Internet. E mais uma vez somos obrigados a recorrer a Marx: a História se repete uma vez como farsa e outra como tragédia.
E a tragédia é sutil, colorida, divertida e disruptiva. Um grande playland que engolfa milhões de desavisados. Há saída? Sim. E aqui não se trata de nenhum manifesto ludista. O problema não está na tecnologia e sim em quem a controla. Urge a regulamentação da Internet. E já passou do momento de refletir com ênfase como pode se dar a retomada desse controle por parte da civilização. Por enquanto, quem tudo controla são os cavaleiros da barbárie.
*Zeca Peixoto é jornalista e mestre em História Social