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Cárcere e dignidade humana

No artigo, frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto fala sobre sua prisão ao longo de dois anos, em 1972 e 1973.

Participei em Brasília do Seminário Internacional “Segurança Pública, Direitos Humanos & Democracia”, promovido pelo IREE. Discorri sobre o tema que intitula este artigo.


Minha vantagem sobre o grande número de palestrantes ali reunidos, entre 6 e 7 de junho, é ter sido preso comum ao longo de dois anos: 1972 e 1973. Estive em três unidades prisionais de São Paulo: Penitenciária do Estado, Carandiru e Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, que ora abriga o comando do PCC.


A ditadura militar decidira afastar três frades dominicanos acusados de “terroristas” do convívio dos presos políticos, após dois anos de encarceramento: Fernando de Brito, Ivo Lesbaupin e eu. Para tentar evitar que a medida repercutisse como perseguição à Igreja, três outros presos políticos foram incluídos no pacote de transferências: Maurice Politi, Vanderley Caixe e Manoel Porfírio.


Minha resposta é “sim” quando me perguntam se é possível ressocializar presos comuns. Não há, contudo, interesse do Estado, como bem explica Michel Foucault em sua obra “Vigiar e punir”. O sistema carcerário brasileiro, que hoje abriga quase 900 mil detentos (cerca de 40% sem condenação formal), é meramente punitivo e vingativo. Submete corpos e não reeduca subjetividades.


Em Presidente Venceslau, onde permanecemos por mais tempo, três iniciativas alteraram os paradigmas da população carcerária: incentivo à criação artística; curso supletivo de ensino médio; e acesso ao rádio. Apesar das resistências da administração penitenciária, criamos oficinas de pintura e grupo de teatro. Os participantes dessas atividades recuperaram a autoestima ao expressar, em telas e interpretações cênicas, o conturbado universo que traziam na subjetividade. Um eficiente processo de autoterapia, pelo qual o ócio carcerário se viu superado por intenso empenho nos diferentes espaços de expressões artísticas. 


Para surpresa da direção do cárcere, de 400 presos comuns, 68 se inscreveram no curso supletivo, então denominado madureza. Formadas duas turmas, os seis presos políticos assumiram os conteúdos didáticos e pedagógicos. Os exames eram aplicados por professores vindos de fora, o que assegurou validade oficial ao curso. 


As conversas da população carcerária, até então centradas em delitos e pornografia, passaram a ter como referências a história do Brasil, contos de Machado de Assis ou a Tabela Periódica. Aumentaram os pedidos de livros à biblioteca e o acervo foi ampliado graças à mobilização de amigos. Érico Veríssimo nos enviou meia dúzia de grandes caixotes com farta literatura. 


A muito custo convencemos o diretor da penitenciária a permitir que cada um dos 400 presos tivesse rádio na cela individual. Descontou-se o valor do aparelho do pecúlio prisional assegurado por lei a cada encarcerado. O que não sabemos é se a compra por atacado correspondeu ao valor que pagamos pelo produto...


Favorecer o acesso ao rádio foi como abrir janelas nos muros da penitenciária. Diante da diversidade de informações, as conversas deixaram de ter como tema central a criminalidade.


Tivesse o governo interesse e empenho em ressocializar os detentos, transformaria nossos cárceres em grandes oficinas de habilitação profissional. Os presos trabalham, mas em atividades mecânicas, sem criatividade. Conheci um, em Presidente Venceslau, que há oito anos limpava o mesmo corredor... Outro trabalhava na alfaiataria, mas não sabia fazer uma calça ou camisa. Sua tarefa era pregar botões... 


Em sistema de cooperativas, como faz o Instituto Humanitas360, envolvendo inclusive as famílias das detentas, é possível propiciar qualificação profissional, produção de renda e resgate da autoestima cidadã. 


Há, no entanto, que adotar medidas correlatas ao sistema prisional, como evitar a privatização dos cárceres (onera-se o custo do sistema e favorece a corrupção entre governantes e empresários); descriminalizar o uso e o comércio de drogas; desmilitarizar as polícias; combater a tortura e o racismo; qualificar os carcereiros; limitar as prisões cautelares; aprimorar o sistema de saúde física e psíquica dos encarcerados; e favorecer a saídas temporárias, agora vetadas pelo atual Congresso, embora seja ínfimo o número de infratores dessa medida restaurativa.


Se tais atitudes não forem tomadas, nosso sistema prisional continuará a ser antro de corrupção e tortura, e escola de reincidência criminal. E nós, cidadãos e cidadãs livres, obrigados a auto encarceramento, retidos em casa por medo das ruas, acossados pelo medo, ameaçados por transtornos psíquicos e síndrome do pânico. 


O mais importante, porém, é diminuir a criminalidade. Para isso a receita é óbvia: a redução da desigualdade social; universalização e qualificação do sistema educacional; pleno emprego; e cultura da ética. 


O que não interessa às forças obscurantistas da acumulação privada do capital. 


* Carlos Alberto Libânio Christo, Frei Betto, é frade dominicano, jornalista e escritor